Figura1: Morzine no mapa francês
Figura2: Igreja de Morzine
Figura 3: Vista atual de Morzine
Figura 4: Mesmerismo
Allan Kardec publicou um estudo sobre "possessos" na região de Morzine, Alta Savóia, pequena cidade com cerca de 2500 pessoas. O fenômeno iniciou-se com duas estudantes que alegavam ver Maria, mãe de Jesus, e que apresentavam convulsões. Elas foram exorcizadas pelo abade Pinguet em 1857 e pararam temporariamente de apresentar suas visões e convulsões.
A França anexou a Savóia em 1860 e as autoridades francesas proibiram a prática de exorcismo, tido como superstição (Harris, 1997). Outras pessoas começaram a apresentar não apenas as convulsões, mas diziam-se tomadas pelo demônio, o que levou o Dr. Artháud, de Lyon, a diagnosticar o acontecimento social de "histero-demonopatia". Cabe comentar que nesta época mal se distinguia a histeria da epilepsia, posto que pouco se sabia sobre os neurônios e seu funcionamento.
As pessoas "endemoniadas" aumentaram e chegariam a quase duzentas até 1863. Morzine tornou-se um problema para a administração francesa, que, influenciada pelo espírito racionalista e materialista oriundo da revolução francesa, entendia tratar-se de ignorância, superstição ou algum quadro clínico de causas naturais.
O governo francês enviou o Dr. Adolphe Constant (ou Constans) para o local. Ele defendeu em seu relatório que a demonopatia era causada pelos seguintes fatores: insalubridade das habitações, má qualidade da alimentação e estado histérico dos doentes do sexo feminino (à época acreditava-se que a histeria era relacionada ao útero, sendo uma doença feminina). Não restringindo-se a diagnosticar, o alienista iniciou uma "cruzada" contra os doentes. Segregou-os do meio social, internando-os em hospitais de alienados e até em quartéis. Posteriormente ele viria a criar bibliotecas e cursos de dança (Harris, 1997), mas continuou suprimindo violentamente as manifestações. Algumas mulheres, em 1863 chegaram a fugir para a Suiça, com medo de serem extraditadas para as américas.
A suposta demonopatia continuou até cerca de 1873. Ruth Harris afirma que com os atos de repressão das autoridades francesas, muitos "endemoniados" passaram a dar vazão ao demônio em suas casas, sendo acobertados por seus familiares.
Vê-se que as ações propostas pelo médico não guardam muita relação com sua análise de causas. Esta última tornou-se uma espécie de "discurso científico" que justificaria os atos arbitrários que cometeu.
A história chegou a Mirville (magnetizador) e a Kardec. Kardec trocou correspondências com médicos e espíritas locais e dá a entender que chegou a visitar a região e a ver alguns dos "possessos".
Ele publicou em dezembro de 1862 o seu primeiro artigo sobre o evento, e mais quatro outros em 1863. Constans leu alguns dos artigos e os dois entraram em debate franco sobre a questão.
Kardec desconstrói a análise de Constans. Segundo ele, não há como afirmar que a localidade fosse miserável e insalubre (outros lugares na França e na Suiça seriam mais e não apresentariam os mesmos fenômenos), não há outros sinais de má alimentação (ele encontrou poucas pessoas com raquitismo ou bócio), e a tese da histero-demonopatia, além de meramente descritiva pelo frágil avanço das ciências da época, não explicava alguns fenômenos que aconteceram no povoado.
O Dr. Alexander sintetizou os argumentos de Kardec no trabalho publicado recentemente na "Transcultural Psychiatry" da seguinte forma:
"(...) a expressão de habilidades não adquiridas (falar francês fluente e responder em linguagens diferentes, como o alemão e o latim), o conhecimento de eventos à distância (clarividência), a leitura do pensamento de outros (telepatia), transfiguração, referir-se a si mesmo na terceira pessoa ("ela", "a filha", etc.), a manifestação corrente de uma personalidade que se considera o demônio, o paciente afirmar que um poder externo o controla, o comportamento normal nos intervalos entre os episódios, pressão arterial normal apesar da intensa agitação, ódio intenso da religião e amnésia entre os episódios."
Kardec argumenta que se trata de uma obsessão coletiva, que abateu-se na localidade "uma nuvem de espíritos malfazejos", da mesma forma que já aconteceu em outros lugares. As vítimas têm sensibilidade mediúnica e "o eu do espírito estranho neutraliza momentaneamente o eu pessoal".
O codificador entende que "os espíritos curadores e consoladores, atraídos pelo fluidos simpáticos, substituirão a maliga e cruel influência que desola aquela população." Ele cita a correspondência do Sr. A..., de Moscou, que passou por problemas semelhante em suas terras e que tratou dos obsediados com "imposição de mãos" e "fervorosa prece".
Estes artigos de Kardec, ao lado dos que discutem a chamada "loucura espírita" são as bases de muitos dos trabalhos e terapêuticas que dispensamos hoje a médiuns, doentes mentais e pessoas em sofrimento psíquico que procuram os centros espíritas.
Um olhar espírita do século XXI, já distante no tempo, seguramente manteria a análise do codificador: há indícios de mediunidade e obsessão nestes fenômenos. Isto não significa que, em um fenômeno coletivo como este, também não pudesse haver epilépticos (que infelizmente foram asilados), histéricos ou simplesmente neuróticos impressionáveis e pessoas que viveram uma situação de estresse e de desenraizamento, devido à mudança de pátria e à intervenção repressora cultural das autoridades francesas. Junte-se tudo isto e temos uma explicação plausível para as proporções e temporalidade das pretensas possessões de Morzine.
Fontes Bibliográficas
ResponderExcluirAllan Kardec. Estudos sobre os possessos de Morzine. Revista Espírita. São Paulo: EDICEL. Dez. 1862; Jan., Fev., Abr., Mai. 1863
Alexander Moreira-Almeida e Francisco Lotufo Neto. Spiritist view of mental disorders in Brazil. Transcultural Psyquiatry, v. 42, n. 4, 2005
Harris, Ruth. The “mal de Morzine” in Nineteenth Century France. The Journal of Modern History. v. 69, n. 3, 1997.
Estou lendo:
ResponderExcluirAllan Kardec. “O que é o Espiritismo”. Tradução de Salvador Gentile e revisão de Elias Barbosa. Araras, SP, IDE, 71ª edição, 2008.
No capítulo segundo (Noções elementares de Espiritismo) no item 75 do tema “Escolho dos Médiuns”, esta edição traz uma nota de rodapé citando Morzines.
“75 - A subjugação obsessiva, o mais ordinariamente, é individual; mas, quando uma falange de Espíritos maus se abate sobre uma população, ela pode ter um caráter epidêmico. Foi um fenômeno desse gênero que ocorreu ao tempo do Cristo; só uma poderosa superioridade moral podia domar esses malfazejos, designados então sob o nome de demônios, e devolver a calma às suas vítimas.”
Nota de rodapé vinculada: “Uma epidemia semelhante castigou por vários anos uma aldeia da Haute-Savoie (Ver a Revista Espírita, abril e dezembro de 1862; janeiro, fevereiro, abril e maio de 1863: Os possessos de Morzines).”
Obrigado pelo complemento no meu estudo!
Leandro C.
Alcione Albuquerque escreveu:
ResponderExcluir" Sempre um prazer ler artigos como esse , bem argumentados.
Tais pesquisas sao uteis no esclarecimento do tema "mediunidade & saude mental".
parabens ao autor.
Obrigada Jader.
Alcione Albuquerque
Psicologa clinica
Parabéns pela matéria. Muito esclarecedora.
ResponderExcluirObrigado pelo complemento à leitura da Gênese
ResponderExcluirParabéns pelo trabalho e tem também a R.E. Abril 1862.Revista Espírita de Agosto de 1864. Vocabulário Espírita e Gênese também tem citações.
ResponderExcluirAllan Kardec explica a ação de um bom Magnetizador para produzir bons resultados acompanhados da ação magnética da prece.
Revista Espírita – 1862, Dezembro: Estudo sobre os possessos de Morzine
Aliás, compreende-se que o poder da ação fluídica não só está na razão da força de vontade, mas, sobretudo, da qualidade do fluido introduzido e, conforme dissemos, tal qualidade depende da instrução e das qualidades morais do magnetizador. Daí se segue que um magnetizador comum, que agisse maquinalmente para magnetizar pura e simplesmente, produziria pouco ou nenhum efeito.
Grande Abraço do youtube Luciano Fábio
Muito bom. Grata pelo esclarecimento
ResponderExcluirMuito esclarecedor!!
ResponderExcluirObrigado aos leitores que gostaram do trabalho!
ResponderExcluirMuito interessante e esclarecedor o seu artigo, venho me aprofundando nos estudos da apometria e a sua publicação me abriu muitos canais para a minha instrução.
ResponderExcluirGratidão.
Obrigado pelo incentivo, Grace!
ResponderExcluirTexto esclarecedor trazendo informações importantes para que se dispõe estudar a Doutrina Espírita. Eu particularmente achei interessante o caso de Morzine que trata de uma obsessão coletiva
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