Estávamos na rua Augusta, em um restaurante próximo da
Paulista, fazendo uma viagem de descanso em família. São Paulo é um estado
cheio de mineiros. Com o tempo, eles aprendem a falar aquele português padrão jornal
das oito da “Rede-Globo” e escondem a mineiridade das palavras. Todavia, o
ouvido continua atento aos sotaques de casa, e quando é conveniente, eles se
revelam aos conterrâneos.
Fazendo o pedido com o garçom, ele claramente nos
identificou. Perguntou, discreto, dentro da liberdade que concedemos, de onde
éramos, e nos confiou a origem: Sete Lagoas – MG. Os assuntos de mineiridade
iam e vinham ao longo da refeição que ele serviu com competência e gentileza.
Quando chegou ao final, “erramos na mão” com as porções
pedidas, que eram muito generosas, e sobrou muita comida.
- Vocês querem que embrulhe?
Estávamos terminando a viagem e após um passeio, voltaríamos
ao hotel e iríamos ao aeroporto. A comida seria uma espécie de estorvo para
nós. Eu recusei.
Ele explicou:
- Toda a comida que sobra das mesas é descartada no lixo. É um grande desperdício, e há muitas pessoas
passando fome.
Eu estava em plena zona sul de São Paulo, no domingo, e não
via moradores de rua na localidade, que percorremos a pé até chegar ao
restaurante. Hesitei. E lhe expliquei:
- Não vejo moradores de rua por aqui.
Na nossa cultura mineira, o desperdício de comida é um pecado
capital, pior que os pecados menores, aqueles que segundo a crença alheia não
conduzem diretamente aos infernos. Lembrei da insistência em casa pelo
aproveitamento das sobras. Lembrei da casa dos pais. Lembrei da cultura de
fazendas pequenas, em que as sobras são destinadas aos animais criados. Lembrei
da minha avó pedindo que comesse toda a comida do prato e dizendo que ”há muita
gente passando fome no mundo”.
Nos poucos segundos, lembrei até de um estudo da mocidade da
casa de Célia Xavier, centro espírita que frequento há 43 anos: “A fome no
mundo”.
Ele tinha razão. E como minha esposa também é mineira, nós
encampamos a tarefa. Saímos com uma quentinha do restaurante, andando ainda a
pé, no Jardim Paulistano. Era domingo à tarde e só víamos pessoas bem vestidas,
andando pelas ruas, tipo classe A e B. A quentinha ficou na mão, enrolada no
saquinho plástico.
Paramos em uma confeitaria, pedido quase exigente das
filhas. Eu fiquei junto à calçada, porque eles não tinham mesas no lugar, e as
pessoas comiam em pé. Na porta havia grandes bancos de madeira. Fiquei sem
graça de oferecer aos manobristas.
De repente, desceu um vendedor de picolés e ele ficou
conversando com os manobristas, aquela fala rápida, de quem está trabalhando no
domingo, mas não havia conseguido muita coisa. Eu achei que poderia oferecer,
afinal, o risco era de ganhar um “não” e uma cara feia, no máximo um desaforo.
Os olhos do vendedor brilharam. Ele estava sem almoço às
duas da tarde. Ele me agradeceu, agradeceu, agradeceu e apertou minha mão
efusivamente, para minha surpresa. Foi-se feliz, o homem. Sabe-se lá quem iria
ser alimentado com o que iria ser jogado no lixo, mercê das normas sanitárias,
mas que ainda estava até morno.
Uma das minhas filhas viu tudo, e pediu que eu lavasse as
mãos, porque estávamos em época de Covid. Enquanto eu lavava as mãos e passava
o álcool, fiquei pensando na fome, esse mal que acompanha a imensa desigualdade
social do nosso país e que atinge até os trabalhadores, fazendo-os não temer a
mortal Covid.
Depois desse ensino do garçom, nunca mais dispensamos as
sobras de comida dos restaurantes. Já até recebi um “não quero” de um morador
de rua em estado lamentável, já tivemos que rodar no bairro em busca que alguém
que aceitasse a comida, mas já ouvimos muitas vezes:
- Essa é a minha primeira refeição no dia.
Como sabedoria se divulga, e a miséria é a grande vergonha
do país em que vivemos, assim como a indiferença, resolvi escrever a história e
acreditar no efeito “bola de neve” que uma história dessas pode gerar. Não
acredito que ela sequer faça cócegas na imensa diferença social que nos
envergonha diante dos países de primeiro mundo, mas, talvez, torne mais visível
os invisíveis e sua humanidade.
Passe para a frente, e feliz natal!
Compartilho dessa ideia. A caridade não é programa social, mas é uma ajuda pontual muito importante. Se muitos fizessem esse gesto, teríamos uma sociedade muito melhor. O amor contagia.
ResponderExcluirQuando a gente ouve o coração e busca dentro da gente as nossas raízes sempre encontramos as melhores escolhas . A vida nós pede que olhemos com olhar de cristão para tudo a nossa volta , precisamos ter olhos de ver . Ter coerência no falar ,no pensar ,no agir e no sentir . Somos chamados a amar de várias formas em vários momentos e lugares .
ResponderExcluirSem contar o legado que deixamos para nossos filhos quando temos atitude e eles o exemplo vivo do que falamos .
Esse é o verdadeiro sentido do Natal , o compartilhar amor. Que sejamos o sementeiro a semear.
Gratidão por compartilhar conosco .
Interessante, e real...
ResponderExcluirMuito instrutivo. É um hábito que todos devemos ter. Grato, amigo e Feliz Natal.
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