Alexandre Rocha
Edições FEERJ
160 páginas
14 x 21 cm
ISBN:
85-98419-01-X
O professor Eugène Enriquez, em conferência na
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG provocou a todos o que o
assistiam, quando afirmou que o brasileiro não conhece a sua história. Passada
uma década indignada, após ler a mais recente biografia sobre o Dr. March,
escrita pelo editor da Lachâtre, começo a dar-lhe razão, ainda que a
contragosto.
Fosse
um filme, seria difícil de ser classificado. Aparentemente parece-se com um
documentário, mas flui de forma tão natural e desperta tantos sentimentos no
leitor, que talvez fosse um drama ou, quem sabe, um filme de aventuras.
Discreto, Rocha aparece pouco na sua narrativa, comenta pouco. Quem pensa que o
estilo biográfico é um texto chato, onde se enaltecem os feitos e se descreve a
obra de uma pessoa importante, pode ir mudando os conceitos.
Alexandre
obteve e utilizou um número razoável de documentos, livros, teses, entrevistas,
produções mediúnicas e material obtido em periódicos científicos e
jornalísticos. Não é uma tarefa fácil, reunir informações de um brasileiro do
século XIX.
O
livro é um passeio pelo Brasil Império, ambienta-se inicialmente na região de
fazendas que se tornaria Terezópolis. George March, pai do biografado, é de uma
personalidade ímpar. Português, descendente de ingleses, casado com Dona
Inácia, afro-brasileira, decide construir uma confortável sede de fazenda em
uma região até então erma. Tão notória é a sua fazenda, que a nobreza e a elite
da capital do império viaja até lá para hospedar-se e usufruir da companhia do
anfitrião e das delícias que pode proporcionar uma propriedade luxuosa em
região serrana.
Há
um sonoro silêncio em torno da pessoa de Dona Inácia, cuja influência não pode
ter se reduzido à cor da pele do biografado. Como se deu a união? Como as
elites fluminenses e as autoridades estrangeiras reagiram a este
relacionamento? Inácia faleceu antes de George March? Nada disto parece ter
chegado às mãos do autor, que diante da falta de informações, nada pode
escrever.
Ao
redor da fazenda, o tempo passa e com ele segue a história. A mansão, que tem
vida breve no pequeno livro, vai da glória às ruínas. Do pedido de visita do
próprio imperador (1830) à morte do proprietário (1845) o biógrafo encontra
sutilezas da relação entre Brasil e Inglaterra e traz à luz os problemas de
herança. Vendida a fazenda, nasce Terezópolis, toma cena a questão Christie, um
litígio entre imperadores e o pequeno Guilherme de seis anos fica aos cuidados
de tutores no Rio de Janeiro.
Aos
quinze anos, o jovem Guilherme estuda medicina e aos vinte e um anos defende
tese doutoral, como era exigido à época, graduando-se em medicina.
Alexandre
compara o jovem Dr. March a Francisco de Assis. Tivesse ele nascido na Úmbria
no século XIX, já teria sido objeto de filmes, livros e talvez da devoção
popular italiana. Como Francisco, ele adota um estilo de vida devasso na
juventude, que só teve fim após uma enfermidade progressiva, possível seqüela
da sífilis, doença que vai fazendo perder a mobilidade corporal aos poucos.
A
dor e o fim da herança paterna fizeram-no mudar o estilo de vida, o que Rocha
encontra em correspondência a Dias da Cruz.
De
formação tradicional, o Dr. March abandonaria a medicina chamada alopática
pelos homeopatas para direcionar sua clínica por esta última. Como se deu esta
mudança? Silêncio. Nosso biógrafo, contudo, conseguiu levantar toda a
publicação clínica nos Anais de Medicina Homeopática do Instituto Hahnemanniano
do Brasil, sua atuação nesta instituição, suas descobertas e lutas. Confesso
que fiquei assombrado com a comunicação do Dr. March, já sexagenário, na qual
ele apresenta melhoras oftalmológicas significativas de presbiopia e vista
cansada com o uso de uma certa substância dinamizada, antecedida por uma
irritação do globo ocular semelhante a uma conjuntivite, bem aos moldes da
teoria homeopática.
As
emoções se multiplicariam nos capítulos seguintes. Residindo em Niterói, o
médico e cientista, com anuência de toda a sua família, inicia seu apostolado
na medicina. Médico de todos, do povo e das elites desiludidas com a medicina
tradicional, o Dr. March não apenas atende sem perceber remuneração, como monta
uma farmácia homeopática em casa, para distribuir medicamentos ao povo e
alberga aos que vêm de longe, incapazes de voltar a casa. Diagnosticando a
fome, ele tira dos seus para tratar aos desconhecidos que o procuram. Quando
questionado pelos filhos, ele lhes ensina o Evangelho.
Eleito
vereador, continua pobre. Eleito juiz, continua justo. Continua médico.
Continua filantropo. Deixa de ser vereador e juiz. Não abandona a caridade.
Continua espírita. E os casos vão ganhando vida com a pena do autor, sucintos,
rápidos, mas cheios de emoção. A comunidade se incomoda com o estado da
residência do Dr. March e faz um movimento para adquirir-lhe uma nova casa.
Falecem-lhe os filhos e a companheira, mas não lhe faltam forças para acolher,
tratar e curar. E os casos impressionam.
Neste
ínterim, o Brasil se torna república. A armada se revolta e uma de suas naves
de guerra dispara tiros contra o Rio de Janeiro e Niterói. Os March se
refugiam, mas a caridade continua, uma caridade tão comovente quanto a saúde
popular no Brasil que finda o século XIX e inicia o século XX.
Quando
finalmente a doença o impede de locomover-se e fica no leito, não se sabe em
que estado de consciência, diferentes médiuns fluminenses começam a emitir
receituário homeopático assinando G. March. Evidências de comunicação mediúnica
entre vivos?
O
médico deu seu último suspiro em 1922. A prefeitura de Niterói assume as custas
do enterro e fica em luto por 48 horas. Uma multidão acompanhou o féretro até o
cemitério do Maruí. O governador do Estado do Rio de Janeiro se faz
representar. Catulo da Paixão Cearense lhe escreve uma poesia. Gilberto Freire
faria constar seu nome em um de seus livros.
A
segunda parte é uma coletânea de mensagens dadas pelo Dr. March a três médiuns:
Telma Pereira, Raul Teixeira e Solange Pessa. Nesta parte o biógrafo se cala
totalmente, apenas transcreve.
Alexandre
Rocha escreveu um texto limpo, que emociona, quem sabe consiga trazer de volta Dr. March das brumas do esquecimento?