8.3.22

UM GRANDE DOSSIÊ SOBRE BEZERRA DE MENEZES

 



Jáder Sampaio

Recebi há um mês o mais novo livro escrito por Luciano Klein Filho: Bezerra de Menezes: o homem, seu tempo e sua missão. Na verdade, mais um dossiê que um livro, porque o autor publica o texto na íntegra de muitas de suas fontes, obtidas ao longo de décadas de estudo. Em princípio, ele assusta aqueles que estão acostumados a ler livros de 200 ou 300 páginas, pelo seu tamanho – são 1187 páginas até o final das referências bibliográficas.

Ao contrário da primeira impressão, a leitura tem sido muito agradável. Uma das primeiras coisas que o autor fez foi pesquisar as notas de falecimento dos jornais e periódicos da época e como leitor tive uma recordação dos evangelhos: Jesus havia voltado do deserto e começa a visitar as cidades da Galileia, na narrativa de Lucas , até que chega em Nazaré e, após ler uma profecia de Isaías  Is 61:1-2, intitulada, na Bíblia de Jerusalém, “vocação de um profeta”, Jesus anuncia a seus conterrâneos:

“Hoje se cumpriu aos vossos ouvidos essa passagem da Escritura”  Lc 4:21

Os nazarenos começaram a comentar que ele era o filho de José e a cobrar dele curas em sua própria cidade. Ele, então disse uma frase curiosa:

“... nenhum profeta é bem recebido em sua pátria.” Lc 4:24

Cito essa passagem evangélica para explicar que Bezerra mereceu notas nos mais importantes jornais da República Velha, e recebeu muitas palavras de reconhecimento por suas muitas qualidades tornadas públicas. Apenas o jornal cearense “A República” (CE) escreveu algo depreciativo sobre ele e sobre o espiritismo:


“Da escola ultramontana, em princípio, foi descendo na escala das crendices humanas, até declarar-se espírita, aos últimos dias da sua existência, já materialmente enfraquecida pelos insultos da idade, logo, intelectualmente decaída (...)”  KLEIN FILHO, Luciano. (2021, p. 42)


Outros jornais, do Rio de Janeiro, São Paulo e Pernambuco, diriam outras coisas:


“Amigo e estimado clínico desta capital ... um dos mais prestimosos chefes do Partido Liberal, por vezes escolhido pelo corpo eleitoral da cidade do Rio de Janeiro” Cidade do Rio, 11 de abril de 1900


... concorria grandemente seu espírito de caridade, pois que era médico dos pobres, dedicado e afetuoso” Cidade do Rio, 11 de abril de 1900


“... Retirado da política, o Dr. Bezerra de Menezes dedicava-se exclusivamente à sua numerosa clínica como um dos médicos mais humanitários desta capital.” A Notícia (RJ), 11 e 12 de abril de 1900


“Um dos poucos indivíduos que, depois de terem dominado as posições mais elevadas, sabem olhar para elas sem saudades e empregam em benefício dos seus semelhantes todas as energias de que serviram para sobressair e elevar-se sobre o nível comum.” Gazeta de Notícias (RJ) 12 de abril de 1900


“... Médico, e médico hábil... um contínuo labutar pelo benefício da pobreza. ... Por isso morreu paupérrimo.”  Jornal do Brasil (RJ), 12 de abril de 1900.


“Há muito tempo que abandonando a política entregou-se ao exercício de sua profissão de médico, onde também se distinguiu pelo seu desinteresse e atos de caridade” Jornal do Comércio (RJ), 12 de abril de 1900


“... em todas essas manifestações da sua atividade (política) deu sempre (...) as mais brilhantes provas da sua capacidade e do seu valor moral e intelectual; mas foi sobretudo no abnegado sacerdócio da sua clínica e na doce penumbra da sua vida íntima que mais refulgiram os peregrinos dotes de seus espírito...” O País (RJ) 12 de abril de 1900


“Notável médico homeopata...”  Correio Paulistano (SP), 12 de abril de 1900


“... o grande e humanitário cidadão Dr Adolfo Bezerra de Menezes, presidente da Federação Espírita do Rio de Janeiro (...) eminente espírito que tomou como divisa – amar ao próximo como a si mesmo.” O Guia (PE) 15 de abril de 1900


Muitas outras fontes foram citadas pelo autor do livro, mas recomendo a leitura do novo trabalho sobre Bezerra de Menezes que nos chegou às mãos através de um pedido à Amazon.com.br que comercializa o título.

Conhecer os que construíram as instituições espíritas que “herdamos”, sem sermos proprietários, é muito importante para definirmos os objetivos do nosso trabalho de hoje ao futuro. 


1.2.22

SE O ESPIRITISMO É FILOSOFIA, QUE FILOSOFIA É O ESPIRITISMO? COM A PALAVRA, DEOLINDO AMORIM

 


Capa antiga do livro Allan Kardec, de Deolindo Amorim

Vejamos abaixo a avaliação que Deolindo Amorim faz do pensamento de Allan Kardec, em um livro que hoje está esgotado: Allan Kardec: o homem, a época, o meio, as influências e a missão, publicado pelo Instituto Maria em 1981. É um livro que se originou de uma palestra do jornalista do "Jornal do Commercio" e sociólogo  baiano sobre o fundador do espiritismo em Juiz de Fora. Nesse trecho ele faz uma análise filosófica do pensamento de Kardec, identificando influências. É um texto muito denso, porque a análise que ele faz demanda o conhecimento de coisas como humanismo, racionalismo, universalismo, empirismo, religião, idealismo transcendental, entre outras questões, e por muitos anos o ensino de filosofia foi negligenciado em nossas escolas brasileiras.


"Há nele (Allan Kardec), bem conjugadas na estrutura do seu pensamento, três linhas de pensamento, bem definidas: humanismo, racionalismo e universalismo.

Se, realmente, encareceu a necessidade da prova dos fatos, e ele próprio julgou indispensável a experiência no campo fenomênico, não foi, contudo, um experimentalista radical, fechado no círculo exclusivo dos fenômenos, pois a visão global lhe permitia encarar a comunicação dos espíritos também pelo prisma filosófico e pelas suas consequências; se deu muita ênfase à razão, se acentuou bem a importância do raciocínio claro, não foi um racionalista ortodoxo, entronizado na supremacia intelectual, indiferente a outros aspectos da vida; se reconheceu o valor da fé, como necessidade do espírito, não chegou à beatice nem aprovou atitudes contemplativas, mas preconizou claramente a "fé raciocinada" em contraposição à fé cega ou passiva" (p. 31)




Acho que o livro foi esquecido por muitos intelectuais espíritas que escrevem sobre o assunto, hoje. O que Deolindo entrevê é um posicionamento singular do ponto de vista filosófico e teológico. Kardec emprega a razão, mas não é racionalista, observa os fatos, mas não é empirista radical, reconhece a fé, mas não é místico, propõe uma reunião de espíritas em torno dos ideais espíritas, mas não um conjunto de ritos, mitos, hierarquia e outros elementos exteriores. Propõe a fé, mas combate o dogma religioso ou teológico. Analisou os fatos produzidos pelos médiuns, mas também seu discurso, influenciado pelos espíritos, de forma racional, mas intersubjetiva, e finalmente, passou a vida buscando a essência do que ensinavam os espíritos, diferenciando das opiniões pessoais, com o auxílio da razão e do estudo do trabalho de diversos médiuns.

Ele curiosamente não fala diretamente do positivismo, talvez pela flagrante contradição entre a teoria dos três estados de Comte e a concepção racional de Deus, bem como a metafísica desenvolvida em diálogo com os espíritos. Mas ao distinguir o trabalho de Kardec do experimentalismo radical, ele aponta um ponto importante na diferenciação entre espiritismo e positivismo. 

15.1.22

ESQUINA DO CÉLIA 2021

 


Entrevista de janeiro de 2022

https://www.youtube.com/watch?v=Ww8u7C5CJok


Jáder Sampaio


Perdoem os seguidores atentos do blog, mas em comemoração ao milhão e meio de acessos, vou divulgar as entrevistas feitas no programa Esquina do Célia, que vem sendo veiculado pela TV Célia Xavier, no YouTube, todo segundo sábado do mês, às 20 horas.

Existe um sumário com todos os programas na página ao lado da página inicial do blog, contendo os conteúdos, apresentação dos convidados, data e links para assistir onde julgar mais confortável (na TV, assentado no sofá, por exemplo).

O conhecimento avançou muito e é muito difícil (para não dizer, impossível) para um expositor ou autor espírita estar atualizado sobre todas as áreas do conhecimento. Por essa razão, apresentamos as áreas de formação dos entrevistados, para que quem assiste possa entender o que ele estudou profissionalmente, o que pode ser útil no tema sobre o qual estamos conversando.

Temos valorizado na nossa agenda, autores novos de livros espíritas, publicados por pequenas editoras (mas nem sempre), coordenadores de projetos no movimento espírita, tradutores, ou seja, pessoas trabalhadoras que nem sempre são conhecidas, que não costumam ser expostas na grande mídia. Assim vamos conhecendo outras casas espíritas, outras iniciativas e pessoas interessantes. É um espaço em que se pode conhecer o que está surgindo nas casas espíritas, trocar experiências, ver o que não se veicula normalmente na mídia ou nas reuniões públicas espíritas.

Com a ampliação das editoras de livros espíritas (nem sempre espíritas, e nem sempre com um corpo de revisores espíritas), criou-se certo temor pelos livros e autores novos. Os espíritas estão sempre perguntando uns aos outros se são autores confiáveis, o que gera um ambiente de resistência aos autores novos sérios. Penso que cabe às casas espíritas preparar seu público para que, nas palavras do apóstolo Paulo (1 Ts. 5:20-22): "Não desprezeis as profecias; julgai todas as coisas, retende o que é bom, abstende-vos de toda forma de mal." Com esse espírito, trazemos autores e expositores para que possam explicar suas publicações, mostrar em que se baseiam, analisar logicamente o que propõem. 

Em 2022 estamos com a ideia de ampliar um pouco a agenda do Esquina do Célia para divulgar iniciativas da nossa própria casa, mas a ideia original do programa continua. Há muito o que conhecer!

A sede da Associação Espírita Célia Xavier fica em um sobrado de esquina, onde conversávamos após o final das reuniões de mocidade, e o hábito se estendeu com o passar dos anos, até que houve um roubo à mão armada dos jovens que lá se encontravam. Depois disso, passamos a reunião para um horário diurno, mas mesmo assim é comum o encontro dos jovens na saída do Célia Xavier. 

Convido as almas jovens, desejosas de conhecer e conversar sobre o espiritismo em diversas perspectivas que participem desse programa, não apenas assistindo e curtindo nas mídias, mas perguntando e posicionando-se no chat, durante as entrevistas.

Agradeço à equipe da TV Célia Xavier: Parreira, Humberto, Márcinha, Pedro e todos os que não estão na telinha pessoalmente, mas possibilitam que ela esteja ao vivo.

Entrevistados de 2020

7. Raphael Vivacqua Carneiro: "Lamartine Palhano Júnior" - 13/02/2021

https://www.youtube.com/watch?v=flvCxQKRf2Y&t=161s

8. Alexandre Fontes da Fonseca: "Jornal de estudos espíritas, Valorizar Kardec e diversas publicações sobre física e espiritismo nos livros da Liga de Pesquisadores do Espiritismo" - 13/03/2021

https://www.youtube.com/watch?v=1XYgFBq_yho&t=17s

9. Alexandre Caroli Rocha: Chico Xavier - O Parnaso de Além Túmulo, uma dissertação de mestrado e Humberto de Campos, uma tese de doutorado. Como parte da Semana de Chico Xavier na AECX: Chico Amor Xavier. 10/04/2021

https://www.youtube.com/watch?v=x5WqaWFD7as

10. Daniel Salomão e Humberto Schubert: dois autores de Juiz de Fora-MG, falam de "Diálogos Espíritas" e da Sociedade Espírita Primavera. Um livro de perguntas e respostas ao espírito Ivon, através da mediunidade de Vinícius Lara. 08/05/2021

https://www.youtube.com/watch?v=VPoOiFGkTh8&t

11. Evandro Noleto Bezerra: o mais novo tradutor das obras de Kardec publicadas pela Federação Espírita Brasileira, que considerou as diversas edições em vida e suas mudanças. 12/06/2021

https://www.youtube.com/watch?v=tXMVaAFO2jM

12. Marcelo Orsiniexpositor e autor de obras literárias espíritas conversou sobre o projeto Espiritismo BH, que inclui uma Web Rádio, assim como sobre seu último livro "Ênio Wendling - pela vereda mediúnica". 10/07/2021

https://www.youtube.com/watch?v=3q3LYXS-M-w

13. Alexander Moreira-Almeida: psiquiatra, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, coordenador do Núcleo de Pesquisas em Espiritualidade e Saúde, além de ex-coordenador de órgãos internacionais de psiquiatria, fala das diversas pesquisas que ele conduziu ao longo da sua carreira acadêmica, na área da espiritualidade. 14/08/2021

https://www.youtube.com/watch?v=Q1SFTUdcHes

14. Alcione Andrade Albuquerque: Psicóloga, médium, autora de livros doutrinários e infantis, fundadora da Associação Médico Espírita de Minas Gerais e da Associação Brasileira de Psicólogos Espíritas - Seção Minas Gerais. Ela fala de seu percurso e de seu livros. 11/09/2021

https://www.youtube.com/watch?v=5iAQAGNf1gw&t=15s

15. Adair Ribeiro Júnior: Engenheiro Naval, mergulhador e curador do Museu Virtual AKOL - Allan Kardec on-Line.   Adair explica como o museu foi criado e como foi feita a parceria com o Portal Allan Kardec da Universidade Federal de Juiz de Fora. Os documentos, sua obtenção, transcrição e tradução; as parcerias que foram se formando e algumas informações muito interessantes sobre essa trajetória internacional de fontes primárias são o objeto dessa conversa. 09/10/2021

https://www.youtube.com/watch?v=dv4UFikpi00&t=14s

16. Maurício A. Brandão: Funcionário público do estado de São Paulo, graduado em história. Maurício conversa conosco sobre o livro Cristão, que foi psicografado parte por ele, parte por Roberto Caetano. Tem por personagens centrais, Antônio, centurião romano que conhece o cristianismo e Cibele, liderança cristã na Villagio Fratello Gesú, situada há alguns dias de viagem de Roma. O livro não é apenas uma história com personagens da época, mas uma comparação das diferentes culturas romana, cristã, judaica, grega, através dos conflitos e decisões dos atores da narrativa e, principalmente, o acompanhamento da luta interior de quem quer que se pretenda tornar-se cristão. Sob essa última ótica, é algo bem atual e presente nos nossos dias. 14/11/2021

https://www.youtube.com/watch?v=-ZW4IPn0M2E


17. Wesley Caldeira:  defensor público do estado de Minas Gerais, atualmente presidente da Aliança Municipal Espírita de Montes Claros e do 14º Conselho Regional Espírita de MG. Articulista de Reformador, além de diversos capítulos de livro, publicou dois livros pela Federação Espírita Brasileira: Deus, antes e depois de Jesus e Da manjedoura a Emaús, sobre o qual conversamos na entrevista. 11/12/2021

https://www.youtube.com/watch?v=mHRdSMrwe44&t=4s

13.1.22

CHEGAMOS A UM MILHÃO E MEIO DE VISUALIZAÇÕES DO ESPIRITISMO COMENTADO


Comemoramos hoje, 13 de janeiro de 2022, um milhão e meio de visualizações do Espiritismo Comentado. Ele tem sido uma espécie de diário de notas dos estudos que vimos fazendo em torno do pensamento e do movimento espíritas, no Brasil e no exterior. São muitas leituras e reflexões ao longo dos anos.

Com a pandemia, vieram as palestras e o programa "Esquina do Célia", da TV Célia Xavier, que ganharam dois índices no Espiritismo Comentado, nas respectivas pastas. Um pequeno resumo e um link para as gravações no YouTube mostram nossa interlocução com diversos estudiosos e nossos estudos apresentados para públicos diversos.

Agradeço a todos que tornaram possível essa produção, lendo, questionando, contribuindo, seja concordando ou discordando, mas exercendo a liberdade de pensamento. 

Aos que nos acompanham, espíritas ou não, muita gratidão.

1.1.22

AS DIFERENTES REUNIÕES PÚBLICAS, DE ESTUDO E DE FORMAÇÃO DOS TRABALHADORES ESPÍRITAS


"Declaração" de membro titular da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas em Paris, na época de Allan Kardec

Jáder Sampaio


A divulgação do espiritismo, bem como o atendimento fraterno em associação à atividade de passes são duas frentes de atividade das sociedades espíritas em geral, associados às reuniões públicas.

Era muito comum no Brasil, os centros manterem reuniões públicas com estudo de “O Livro dos Espíritos” na primeira parte, seguido de “O Evangelho segundo o espiritismo” na segunda. Na metade do século passado já era comum a realização de reuniões mediúnicas de caráter privativo, evitando-se a realização de reuniões mediúnicas públicas, por diversas justificativas, incluindo aí uma forma de proteção institucional contra a criminalização do espiritismo, mas também preocupados com a integridade do médium e a união de pensamentos dos participantes da reunião.

Os membros de reuniões públicas eram aos poucos integrados às demais atividades da sociedade espírita, na medida em que demonstrassem interesse, frequência e aprendizagem, nos pequenos grupos, nos quais os dirigentes participam também das demais "frentes de trabalho" da casa espírita.

Há quarenta anos, em nossa casa, quando se desejava fundar uma nova reunião mediúnica ou preparar alguém para participar de uma reunião mediúnica, fazia-se um estudo continuado de “O Livro dos Médiuns”.

Com o tempo e a preocupação com a preparação das pessoas para as atividades próprias da casa espírita, bem como a ampliação de alguns centros espíritas na capital mineira, surgiram novas iniciativas de formação dos trabalhadores espíritas.

Em Minas Gerais houve uma iniciativa do Grupo Emmanuel, dirigido por diversos estudiosos, que consideravam importante o estudo do Novo Testamento (e do Antigo Testamento, eventualmente) que acabou substituindo nas reuniões o estudo de “O evangelho segundo o espiritismo” (que ficou como uma das fontes utilizadas nesse estudo), o que disseminou o pensamento de Emmanuel sobre a mensagem cristã e fez surgir novas iniciativas de exegese espírita dos evangelhos.

Para a formação dos trabalhadores da casa espírita, foram surgindo ciclos de estudos de doutrina e de mediunidade, especificamente, em diversos lugares no Brasil. Já tínhamos um ciclo de estudos de mediunidade na União Espírita Mineira, quando surgiu o COEM (Curso de Orientação Espírita e Mediúnica), uma proposta de estudos impressa no Paraná, salvo engano. Já existiam iniciativas em São Paulo, como os diversos cursos de formação propostos por Armond, como o de “Aprendizes do Evangelho”, por exemplo. As propostas incorporavam a nova literatura mediúnica produzida no Brasil, o que envolvia a obra psicografada por Francisco Cândido Xavier, ditadas por Emmanuel e André Luiz, os livros de Cairbar Schutel e Vinícius e muitos outros autores que são vistos como obras subsidiárias. A FEESP chegou a publicar inúmeros livros de apoio aos seus cursos, que talvez hoje se encontrem nas bibliotecas dos núcleos espíritas mais bem estruturados.

Sociedades Espíritas como o Grupo Scheilla, em Belo Horizonte, articularam as iniciativas de formação ao acesso às atividades nos grupos. Nela funcionam paralelamente as reuniões públicas, muito concorridas e os cursos de formação, que ficaram conhecidos pelo grupo pelo nome de módulos, porque há uma introdução à doutrina espírita, uma preparação para a mediunidade, um módulo dedicado ao estudo dos evangelhos e um quarto módulo de apresentação sistemática das diversas atividades da casa, como reuniões de passe, etc. As reuniões públicas tratam de doutrina e temas espíritas de interesse do público que procura a casa espírita em busca de informação, consolo, apoio e orientação. 

A Federação Espírita Brasileira, por fim, considerando todas essas iniciativas em curso, em âmbito nacional, diferentes entre si, propôs os cursos de Estudo Sistematizado da Doutrina Espírita – ESDE, que tiveram a sua versão de preparação para a mediunidade em dois volumes e posteriormente o Estudo aprofundado da Doutrina Espírita – EADE. Inicialmente apostilas, agora vendidas em forma de livros, trazem roteiros de estudo com referências a diversos autores espíritas. Propõe que os responsáveis por essa formação sejam mais facilitadores que palestrantes e incentivam os participantes ao estudo e à leitura orientada. Foram criados cursos de formação e trocas de experiência entre as pessoas que trabalham com o ESDE e houve adesão das federativas, especialmente a União Espírita Mineira.

Nesse momento temos, então, as reuniões públicas que se mantiveram como algo voltado aos que procuram o espiritismo em busca de auxílio e orientação e os grupos de estudo que visavam a formar o espírita e a preparar o trabalhador. Três iniciativas diferentes, que ao contrário do que se pensa, atraíram públicos diferentes. As reuniões públicas deveriam ser uma “porta de entrada” ao espiritismo e à casa espírita, mas muitas pessoas a transformaram em uma espécie de lugar de frequência semanal, assistindo a palestra, tomando o passe, sem conhecer as outras iniciativas que existem no núcleo que frequentam. Surgiram também, aqui e acolá, dirigentes cuja única ligação com a casa é a direção da reunião pública, o que fazem como um “mestre de cerimônias”, sem criar um vínculo entre os membros.

Estas transformações trouxeram algumas polêmicas ao meio espírita, que não cabem nesse artigo, por não dar para desenvolver os temas a contento: a questão da centralidade ou  não de Kardec nas reuniões públicas e atividades de formação dos trabalhadores espíritas, a questão dos novos autores e das novas editoras espíritas, alguns desses com perfil místico, de sincretismo oriental ou com as matrizes africanas, outros com afirmações sobre o mundo espiritual, isoladas e aparentemente contraditórias com a literatura geralmente aceita pelo movimento espírita. Junto a elas corre a questão da incorporação dos novos autores, coerentes com a doutrina espírita, com livros bem escritos, no que tange à racionalidade e fundamentação espírita. 

Espero que o final de ano, sempre marcado pela ideia de “fim de ciclo” e de parada para avaliação, nos permita refletir em nossas casas espíritas como estamos recebendo e preparando as pessoas que nos procuram com diversos objetivos, como os que buscam auxílio, os que buscam a introdução ao conhecimento espírita, os que buscam aprofundamento e estudo aprofundados e os interessados em integrar-se nas múltiplas atividades da comunidade espírita.


22.12.21

UMA HISTÓRIA PARA O NATAL

 


Estávamos na rua Augusta, em um restaurante próximo da Paulista, fazendo uma viagem de descanso em família. São Paulo é um estado cheio de mineiros. Com o tempo, eles aprendem a falar aquele português padrão jornal das oito da “Rede-Globo” e escondem a mineiridade das palavras. Todavia, o ouvido continua atento aos sotaques de casa, e quando é conveniente, eles se revelam aos conterrâneos.

Fazendo o pedido com o garçom, ele claramente nos identificou. Perguntou, discreto, dentro da liberdade que concedemos, de onde éramos, e nos confiou a origem: Sete Lagoas – MG. Os assuntos de mineiridade iam e vinham ao longo da refeição que ele serviu com competência e gentileza.

Quando chegou ao final, “erramos na mão” com as porções pedidas, que eram muito generosas, e sobrou muita comida.

- Vocês querem que embrulhe?

Estávamos terminando a viagem e após um passeio, voltaríamos ao hotel e iríamos ao aeroporto. A comida seria uma espécie de estorvo para nós. Eu recusei.

Ele explicou:

- Toda a comida que sobra das mesas é descartada no lixo.  É um grande desperdício, e há muitas pessoas passando fome.

Eu estava em plena zona sul de São Paulo, no domingo, e não via moradores de rua na localidade, que percorremos a pé até chegar ao restaurante. Hesitei. E lhe expliquei:

- Não vejo moradores de rua por aqui.

Na nossa cultura mineira, o desperdício de comida é um pecado capital, pior que os pecados menores, aqueles que segundo a crença alheia não conduzem diretamente aos infernos. Lembrei da insistência em casa pelo aproveitamento das sobras. Lembrei da casa dos pais. Lembrei da cultura de fazendas pequenas, em que as sobras são destinadas aos animais criados. Lembrei da minha avó pedindo que comesse toda a comida do prato e dizendo que ”há muita gente passando fome no mundo”.

Nos poucos segundos, lembrei até de um estudo da mocidade da casa de Célia Xavier, centro espírita que frequento há 43 anos: “A fome no mundo”.

Ele tinha razão. E como minha esposa também é mineira, nós encampamos a tarefa. Saímos com uma quentinha do restaurante, andando ainda a pé, no Jardim Paulistano. Era domingo à tarde e só víamos pessoas bem vestidas, andando pelas ruas, tipo classe A e B. A quentinha ficou na mão, enrolada no saquinho plástico.

Paramos em uma confeitaria, pedido quase exigente das filhas. Eu fiquei junto à calçada, porque eles não tinham mesas no lugar, e as pessoas comiam em pé. Na porta havia grandes bancos de madeira. Fiquei sem graça de oferecer aos manobristas.

De repente, desceu um vendedor de picolés e ele ficou conversando com os manobristas, aquela fala rápida, de quem está trabalhando no domingo, mas não havia conseguido muita coisa. Eu achei que poderia oferecer, afinal, o risco era de ganhar um “não” e uma cara feia, no máximo um desaforo.

Os olhos do vendedor brilharam. Ele estava sem almoço às duas da tarde. Ele me agradeceu, agradeceu, agradeceu e apertou minha mão efusivamente, para minha surpresa. Foi-se feliz, o homem. Sabe-se lá quem iria ser alimentado com o que iria ser jogado no lixo, mercê das normas sanitárias, mas que ainda estava até morno.

Uma das minhas filhas viu tudo, e pediu que eu lavasse as mãos, porque estávamos em época de Covid. Enquanto eu lavava as mãos e passava o álcool, fiquei pensando na fome, esse mal que acompanha a imensa desigualdade social do nosso país e que atinge até os trabalhadores, fazendo-os não temer a mortal Covid.

Depois desse ensino do garçom, nunca mais dispensamos as sobras de comida dos restaurantes. Já até recebi um “não quero” de um morador de rua em estado lamentável, já tivemos que rodar no bairro em busca que alguém que aceitasse a comida, mas já ouvimos muitas vezes:

- Essa é a minha primeira refeição no dia.

Como sabedoria se divulga, e a miséria é a grande vergonha do país em que vivemos, assim como a indiferença, resolvi escrever a história e acreditar no efeito “bola de neve” que uma história dessas pode gerar. Não acredito que ela sequer faça cócegas na imensa diferença social que nos envergonha diante dos países de primeiro mundo, mas, talvez, torne mais visível os invisíveis e sua humanidade.

Passe para a frente, e feliz natal!


14.12.21

UM POUCO MAIS SOBRE DEÍSMO



 Jáder Sampaio

No estudo do Iluminismo francês, McNall Burns examinou rapidamente as concepções religiosas e destacou o deísmo. Já escrevi anteriormente sobre o deísmo no Espiritismo Comentado, ao tratar do texto de Allan Kardec, As cinco alternativas da humanidade e referir-me às descobertas de Charles Darwin que o fizeram abrir mão do cristianismo. https://espiritismocomentado.blogspot.com/2019/02/darwin-deista-kardec-cristao-espirita.html

Todavia, Burns amplia a visão de deísmo, que passamos a resumir. Ele aponta sua criação, com alguma incerteza para Lord Herbert de Cherbury (1583-1648) e sua propagação pelos iluministas franceses, por autores ingleses como Alexander Pope e Lord Shaftesbury na Inglaterra e Thomas Paine, Ben Franklin e Jefferson, na América. 

Os deístas não apenas condenavam as afirmações irracionais das  religiões, mas consideravam a fé organizada um instrumento de exploração para enganar os ignorantes. Esse tipo de ataque, que precisa ser contextualizado, já que boa parte dos cargos eclesiásticos era remunerado pelo Estado na França, por exemplo, embora, verdade seja dita, houvesse um papel social da Igreja, como no caso da educação. Quando o povo, contudo, estava insatisfeito, havia um sentimento de injustiça, porque se pagavam impostos que eram usados pelo Estado e pela Igreja para interesses próprios. 

O historiador norte-americano entende que os deístas queriam construir uma religião mais simples e “natural”, que propunha.

1. A existência de um Deus que criou as leis naturais;

2. seu afastamento do universo após a criação das leis, espécie de não-providencialismo, que emergia em função das “trocas e favores” que alguns religiosos tentavam conseguir com Deus;

3. orações, sacramentos e ritos são apenas atos exteriores, uma vez que não se consegue “subornar a Deus” para que ele derrogue as leis naturais em favor de uma pessoa; 

4. não existe predestinação para o bem ou o mal, que é fruto do livre-arbítrio do homem na Terra e influencia o bem ou o mal que acontecerá na vida futura.

Como se vê, há semelhanças e diferenças das concepções deístas para as concepções espíritas, o que fez com que Kardec considerasse o espiritismo outra alternativa para a humanidade. Há também uma conexão entre o deísmo e a teologia ou religião natural, sobre a qual tratarei em outra matéria.

Referência

BURNS, Edward McNall. História da civilização ocidental. 23ª. ed. Porto Alegre: Globo, 1979 


7.12.21

O ESPÍRITO NO LABORATÓRIO

 


No último final de semana participei do II Congresso Espírita Espiritismo.net, que está disponível no YouTube. Bons expositores foram escolhidos a dedo pela comissão, e agradeço ter sido lembrado, porque não sou muito conhecido. 

Fui convidado para participar da mesa "O Espírito no Laboratório: pesquisas sobre a mediunidade" em conjunto com o Dr. Alexander Moreira-Almeida de UFJF, coordenador do Núcleo de Pesquisas em Espiritualidade e Saúde, já com centenas de trabalhos publicados em revistas técnicas e o Raphael Carneiro da UFES e do Grupo Lampejo, que não pode estar presente por motivos particulares inesperados e enviou o simpático Clóvis Vervloet em seu lugar, para falar da experiência deles sobre varredura medianímica, método proposto por L; Palhano Jr.

Tratei da pesquisa da mediunidade entre o século 19 e o século 21 e depois da mesa um assistente me disse que falei muito de parapsicologia (no sentido positivo). De fato, como tinha apenas 20 minutos, procurei falar de métodos, resultados e como se desenvolveram as linhas de pesquisa da pesquisa psíquica, metapsíquica e parapsicologia até o revival das pesquisas sobre mediunidade com método experimental no final do século 20, início do 21, no estado do Arizona, Estados Unidos. Deixei os trabalhos do Nupes, que aprecio muito, para o Alexander falar, por motivos óbvios.

Perdoem os leitores se faço divulgação de um trabalho em que participei, não é para projetar minha pessoa, mas o conteúdo dos estudos que temos feito. Acho que tivemos uma mesa com um debate respeitoso e muito informativo, e aprendi muita coisa, além de terem surgido novas questões para pesquisar, o que considero ser o que qualquer pesquisador deseja ao participar de um evento. "A verdade é mais importante que o ego" (No sentido geral, não no psicanalítico)

As perguntas foram muito ricas e bem elaboradas, não percam a mesa de debates.

Convido aos interessados, especialmente as pessoas que ficam se perguntando porque a mediunidade não é plenamente aceita pelo ambiente acadêmico, ou, "será mesmo que existe mediunidade"? 

https://www.youtube.com/watch?v=RU8mAwbxj28

13.11.21

UM ROMANCE HISTÓRICO DA ÉPOCA DO CRISTIANISMO É ASSUNTO DO "ESQUINA DO CÉLIA"





Hoje, sábado, 13/11/2021, às 20 horas, entrevistaremos Maurício Brandão sobre o livro Cristão, um romance histórico da época do Império Romano, no programa Esquina do Célia. 



“O primeiro século cristão contado a partir das memórias de Antonio e da sua convivência com o Apóstolo Paulo e Cibele

O passado é passado e não pode ser modificado. Todavia, pode-se e deve-se alterar pensamentos em relação ao passado, visando-se a um presente melhor e a um futuro radio¬so. Nasce assim, o presente trabalho, fruto de recordações de Antonio, centurião romano, na época do cristianismo. O texto foi gerado por Vespasia e construído pelas lembranças de Antonio.

Vespasia procurou escrever uma memória emocional, a história de vários homens através da história da conversão de um deles. O que enriquece o fundo da história é a contemporaneidade com o cristianismo nascente, a convivência com o Apóstolo Paulo e com Cibele, espírito angelical que ficou desconhecido na história da Igreja Cristã.

As dúvidas e angústias que passam por todos nós até os dias de hoje transparecem na incerteza e na atração dúbia que Antonio, então seu filho, sentiu pelo cristianismo. Cristão, assim, não surge como um livro de história, mas como romance que recria memórias emocionais permeadas pelo fundo magnífico das presenças de Paulo e Cibele.

Conseguirá Antonio tornar-se cristão? 

Conheça a história de Antonio e os efeitos de sua amizade com Paulo de Tarde e Cibele neste romance ambientado em Roma e na região do Lácio.”



9.11.21

O ESPIRITISMO, O ANTIGO TESTAMENTO E OS ARQUÉTIPOS DE JUNG

Moisés de Michelângelo


Jáder Sampaio


Desde Allan Kardec os espíritas estudam os textos bíblicos, com uma atitude diferente da dos cristãos que a entendem como a “palavra de Deus”, literalmente. Kardec recomenda que se estude a história para uma melhor compreensão do contexto das narrativas e ensinamentos evangélicos na introdução de seu “O evangelho segundo o espiritismo”. Embora pouco tratado, o antigo testamento parte de uma compreensão de um texto e uma religião voltada às mentalidades de sua época, que necessitavam de práticas exteriores, como os sacrifícios, para impressionar a mente da população de então.

Kardec, no capítulo I de “O evangelho segundo o espiritismo”, transcreveu uma mensagem ditada por ‘um espírito israelita”, que vê no antigo testamento o “gérmen da mais ampla moral cristã”, mas comentada de forma restrita, porque senão não teria sido compreendida. Ele explica da seguinte forma:

“Era-lhes necessária uma representação semimaterial, qual a que apresentava então a religião hebraica. Os holocaustos lhes falavam aos sentidos, enquanto a ideia de Deus lhes falava ao espírito. ” (Kardec, Allan. O evangelho segundo o espiritismo, cap 11, item 9)

Na Revista Espírita de 1860, Allan Kardec debate uma questão proposta por um leitor, que entende que os textos das escrituras deveriam ser aceitos como verdades, e pede explicações sobre o caso de Adão não ser visto pelo espiritismo como o primeiro homem da humanidade.

Kardec fala o que hoje entendemos claramente: diversas afirmações que se encontram na Bíblia foram provadas ser falsas, como Josué parando o sol, o mundo criado há apenas 4.000 anos, em apenas seis dias. Ele considera essas explicações como “linguagem figurada”, para a qual é necessária uma interpretação, e que até os teólogos da igreja “se renderam à evidência”.

Nesse texto ele vai ainda se posicionar a favor das ciências naturais como discurso explicativo dos fenômenos naturais, e reduzir o texto do “Gênesis” à condição de conjunto de alegorias bíblicas. Observemos que ao considerá-las como alegorias, e não como mitos, ele reconhece em algum momento o valor explicativo do texto bíblico, talvez a essência das histórias pudesse ser vista como uma narrativa mal contada de algo que realmente aconteceu e foi vivido pelos homens, como o dilúvio.

“Assim falando, cremos servir aos mais verdadeiros interesses da religião. Ela será sempre respeitada, se mostrada de acordo com a realidade e quando não a fizerem consistir em alegorias cuja realidade o bom-senso não pode admitir.” (Kardec, Allan. Os pré-adamitas, Revista espírita, 1860. 

Outro ponto que gostaria de desenvolver nesse texto, diz respeito aos livros de caráter mais histórico da Bíblia. Não é possível comparar os textos sobre os eventos acontecidos àquela época, com os rigores da história contemporânea. Os chamados “profetas anteriores”, que são os livros de “Josué, Juízes, Samuel e Reis”, também considerados livros “históricos”. A Escola Bíblica de Jerusalém entende que a redação do Deuteronômio, por exemplo, tradicionalmente atribuída a Moisés, foi tardia, e baseada em fontes orais ou escritas, “que diferem pela idade” (p. 329)

“Em sua forma definitiva, pois, estes livros são obra de uma escola de homens piedosos, imbuídos das ideias do Deuteronômio, que meditam sobre o passado de seu povo e dele tiram uma lição religiosa.” (p. 329)

A versão final do livro só teria sido completada após a conquista de Jerusalém pelo Império Babilônico, em 539 a. C.  (https://pt.wikipedia.org/wiki/Livro_de_Josu%C3%A9). Para se ter um termo de comparação, Josué é o líder do povo hebreu após a morte de Moisés. Não há registros ou evidências históricas da vida do libertador, chegando até a ser considerado um herói legendário construído ao longo dos anos pelos hebreus, embora possa ter havido um Moisés histórico, sobre o qual se inseriram muitas lendas. As especulações sobre seu nascimento variam entre 1592 a.C. e 1271 a.C. (https://pt.wikipedia.org/wiki/Mois%C3%A9s). Há que se entender que um livro que vai sendo escrito e reescrito ao longo de mil anos, sem arquivos, com fontes orais, com intenções político-sociais, não pode ser entendido como fonte histórica, senão aceitando-se a incorporação de mitos, lendas, narrativas e até mesmo contradições. 

A Escola Bíblica de Jerusalém, na introdução do livro de Josué, faz uma comparação com a narrativa encontrada no livro do Deuteronômio (último livro da lei), que atribui a Josué uma espécie de liderança de todos os hebreus nas guerras contra os povos que habitavam na Terra Prometida, enquanto em Juízes I se apresenta cada povo lutando por seu território, e muitas vezes sendo derrotado.

Não é difícil perceber que diversos personagens do antigo testamento são legendários e simbólicos, como Sansão, que perde a força com um corte de cabelos, despedaça um pequeno leão (juízes 14:8) com as mãos, massacra um exército (!) de filisteus composto de mil homens, tendo por arma uma queixada de jumento (juízes 15:16) e desencarna derrubando as colunas do templo filisteu (juízes 16:29) apenas com as mãos. Ele é uma espécie de Hércules hebreu, embora a tradição rabínica o considere como alguém que existiu e cuja história de vida tem muitos elementos figurados, que necessitam ser interpretados. Ele foi comparado também a Jesus por estudiosos cristãos. O espírito Lamennais faz uma reflexão sobre Sansão, na qual ele é visto apenas como símbolo. (Kardec, Allan. Meditações filosóficas e religiosas, ditadas ao Sr. Didier pelo espírito Lamennais, Revista Espírita, 1871)

Vistos alguns desses personagens apenas como mitos, despindo-os completamente da possibilidade de sua historicidade, podemos tratá-los como arquétipos, no sentido junguiano? Sim, podemos, mas se formos fazê-lo com seriedade, alguns cuidados precisariam ser tomados. Um deles é extrair dos mitos seu mitologema, ou seja, sua estrutura, e mostrar que ela é comum a outros mitos de outras culturas. Uma das características de um arquétipo é ser algo herdado, que está presente no psiquismo antes do nascimento (Humbert, p. 95), apenas em “estrutura” (os conteúdos, as ideias específicas serão elaboradas ao longo da vida), as imagens originais seriam encontradas nos “contos de fadas, mitos e narrativas pertencentes às diversas culturas” (Humbert, p. 96), elas têm um papel orientador para o sujeito que as produz (em sonhos ou imaginações, por exemplo) (Humbert, p. 97), e por essa função o arquétipo é muito próximo do instinto (Humbert, p. 97). Esses arquétipos não são transmitidos pela cultura e pela educação, porque as imagens originais são inventadas e reinventadas pelas pessoas, foi o que o levou a pensar na “herança com a estrutura do cérebro”, inspirando-se nos comportamentos animais (Humbert, p. 98). Aqui se vê que ele temia propor hipóteses como a reencarnação, consideradas muito metafísicas e, portanto, passíveis de ser entendidas como não científicas.

A história de Sansão, por exemplo, tem muitas semelhanças com a história de Hércules e a história de Jesus, mas isso é assunto para outra publicação.


Referências

A Bíblia de Jerusalém. Nova edição revista. São Paulo: Paulinas, 1985. [Traduzido da edição de 1973 de “La Sainte Biblie”, coordenada pela Escola Bíblica de Jerusalém).

Humbert, Elie G. Jung. São Paulo: Summus, 1985.

Kardec, Allan. O evangelho segundo o espiritismo. [IPEAK]

_____ Revista Espírita [IPEAK]




10.10.21

ALLAN KARDEC ADVOGA UMA CERTEZA INSTINTIVA DA EXISTÊNCIA DE DEUS?



Jáder Sampaio


Vi recentemente uma palestra em um centro espírita intitulada "Fé: a certeza instintiva da existência de Deus", em uma semana de comemoração do nascimento de Allan Kardec.

Em Kardec, a expressão “certeza instintiva” seria vista como um paradoxo, uma contradição em si, porque ele advoga a certeza como fruto da razão e o instinto como uma “inteligência sem raciocínio”. Uma certeza instintiva, seria, em tese, uma certeza que não se obtém através do raciocínio, mas que se nasce com ela, uma espécie de crença inata, e que, por isso, não é fruto da razão.

É por isso que não se encontra em nenhum dos escritos publicados de Kardec a expressão “certeza instintiva”, mas se encontra duas vezes “crença instintiva” e se encontra "sentimento instintivo". 

O instinto é uma palavra usada em filosofia e em psicologia para explicar o comportamento animal, principalmente o comportamento que não foi fruto de aprendizagem. As fêmeas dos mamíferos, quando têm seus filhotes, devoram suas placentas, os lambem até limpá-los e os amamentam. Pelo menos as de ratos, cães e gatos fazem uma espécie de ninhos, que têm papel de proteger os filhotes de predadores e de facilitar seu aquecimento. Esses comportamentos não foram aprendidos, e um mamífero não “sabe” porque age assim, mas todos eles agem da mesma forma, conforme as condições oferecidas pelo ambiente em que se encontram. Isso é instinto, uma “compulsão” à ação sem qualquer raciocínio, que um ser humano pode até explicar e mostrar sua finalidade, sua utilidade, seu papel na sobrevivência, mas que os animais fazem automaticamente, sem certamente pensar: “estou grávida, o que devo fazer?”

A razão é um termo ou expressão que se confunde com a história da filosofia. Ela é empregada, de uma forma clássica, para explicitar um conjunto de operações mentais lógicas e consistentes, realizadas pelos seres humanos, que substituíram com vantagem uma forma mágica de conhecimento, mítica, na qual se contavam histórias para explicar, por exemplo, como o homem aprendeu a utilizar o fogo (na cultura grega Prometeu roubou esse segredo dos deuses). A razão exige argumentos, provas, raciocínios segundo regras, na busca da verdade. É uma operação essencialmente consciente, que afeta o domínio afetivo do qual participa a fé, a crença. O ser humano não é essencialmente racional, então ele pode se mover por crenças racionais ou irracionais. 

De volta a Kardec, ele advoga uma fé raciocinada, ou seja, do domínio da razão, capaz de diálogo com quem quer que apresente contra-argumentos dentro das regras da lógica (ou das diversas lógicas aceitas pelo grande guarda-chuva que chamamos de filosofia). O ser humano deve crer com a anuência de sua razão e não porque outros homens também creem. De uma certa forma, Kardec é um filósofo, nesse ponto, semelhante a Kant, que convida a humanidade a acordar do seu “sono dogmático”, ou seja, das ideias compartilhadas por sua família, comunidade religiosa, comunidade política, por seus amigos, mas que não são sustentadas pela razão do próprio sujeito.

A fé, portanto, é passível de crítica, e a crítica não é mal vista, mas entendida como a identificação de um obstáculo para a explicação racional. Quando a crítica é acolhida como ato de agressão, de mera desconformidade, estamos no domínio da fé em dogmas, que Kardec denomina como fé cega, em seu O evangelho segundo o espiritismo. 

Todavia, me dirão, Kardec advoga que há uma crença em Deus partilhada pelas diversas culturas do mundo, até mesmo de povos que apenas recentemente haviam entrado em contato com a cultura ocidental e a cultura oriental. Seria um sentimento instintivo de Deus, como bem colocado na pergunta 6 de “O livro dos espíritos”. Os espíritos usam esse conceito como base de um dos argumentos que sustenta a existência de Deus. Seria algo assim: se todos os povos, incluídos os primitivos (os que mesmo em nossa época mantém suas crenças e costumes bem próximos dos de dezenas de séculos atrás) têm um sentimento instintivo de Deus e o manifestam em sua cultura, e se o ateísmo e o agnosticismo são fruto da aprendizagem, da formulação humana de uma incerteza da existência de Deus, é mais provável que Deus exista. Esse não é um argumento final, nem um argumento único em Allan Kardec, mas se soma à explicação de sua defesa da existência de um Deus transcendente.

Perceba o leitor que sentimento instintivo, crença instintiva e ideias inatas, todas essas expressões usadas por Allan Kardec, não são o mesmo que certeza instintiva. Se é instintivo, é irracional, e o que é do domínio do irracional não gera certeza, a não ser em uma perspectiva que Kardec critica e denuncia como fazendo parte da “fé cega”, e Kant denuncia como um estado de “sono dogmático”, atitudes que o espiritismo reconhece existirem, mas evita ao máximo que estejam na fundamentação de suas afirmações.

Entendo que os expositores às vezes façam afirmações de boa vontade, sem intenção de conflito nem de rigor filosófico, mas é necessário evitarmos a confusão de palavras ao máximo, sob a pena de sermos mal entendidos e de levar as pessoas que estão aprendendo o espiritismo a uma visão contrária à de Kardec.

22.8.21

16 ENLIHPE: 28 E 29 DE AGOSTO

 



Todo ano, a Liga de Pesquisadores do Espiritismo - LIHPE, rede de estudiosos do espiritismo (espíritas ou não) promove seu encontro nacional. Nesse ano o encontro será à distância e aberto a todos os interessados, sob a coordenação dos membros de São Paulo, após três anos distantes dessa capital.

Em 2021 teremos a participação de Julie Beischel, uma pesquisadora norte-americana que vem publicando trabalhos de resultados de estudos com médiuns. Interessa a todos nós os seus artigos, uma vez que emprega métodos experimentais e de observação em seus estudos.

Os links para a participação do público serão divulgados em data mais próxima do evento, aqui no Espiritismo Comentado, no grupo de Facebook da LIHPE e em outras mídias. A participação é livre e não necessita inscrição. Utilizar-se-á o Streamyard para levar o evento ao público. 

https://business.facebook.com/LihpeLigaDePesquisadoresDoEspiritismo/videos/161410425955270/

Segue abaixo a programação do evento:


16º ENLIHPE Tema central: 160 anos de O Livro dos Médiuns

PROGRAMAÇÃO – 28/08/21

Sábado

8h30 Abertura e apresentação artística

8h45 Palavras iniciais: LIHPE / CCDPE-ECM / USE

Marco Milani, Julia Nezu e Rosana Gaspar

9h00 Apresentação 1 – O Livro dos Médiuns: origem dos textos e evolução da obra

Luís Jorge Lira Neto e Luciana Farias

9h20 Perguntas e comentários

9h40 Apresentação 2 – Mecanismos da Mediunidade: Um Paralelo entre André Luiz e Kardec

Alexandre Fontes da Fonseca

10h00 Perguntas e comentários

10h20 Intervalo 1 (café)

10h40 Apresentação 3 – “A loucura sob novo prisma” como produção de conhecimento científico: uma análise a partir da filosofia da ciência de Gaston Bachelard

José Daniel Souza

11h00 Perguntas e comentários

11h20 Apresentação 4 – Catálogo racional de obras para se formar uma biblioteca espírita: a publicação original comparada com alguns de seus manuscritos e demais versões

Adair Ribeiro Jr., Carlos Seth Bastos e Luciana Farias

11h40 Perguntas e comentários

12h00 Intervalo 2 (almoço)

13h30 Apresentação artística 2

14h00 Apresentação 5 – Valorização de Kardec nos trabalhos da LIHPE

Alexandre Fontes da Fonseca

10h20 Perguntas e comentários

14h40 Apresentação 6 – Três conceitos de experiência: o crítico-transcendental, o analítico-pragmático, e o espírita

Humberto Schubert Coelho

15h00 Perguntas e comentários

15h20 Intervalo 3 (café)

15h40 Sessão internacional – Pesquisas sobre médiuns no Windbridge Research Center (Obs:esta apresentação será realizada em inglês)

Julie Beischel

16h00 Perguntas e comentários

16h30 Apresentação 7 – A atuação de Amélie Boudet na sucessão de Allan Kardec

Adair Ribeiro Jr., Carlos Seth Bastos e Luciana Farias

16h50 Perguntas e comentários

17h10 Encerramento das atividades do dia


16º ENLIHPE Tema central: 160 anos de O Livro dos Médiuns

PROGRAMAÇÃO – 29/08/21

Domingo

8h00 Abertura

Painel: Pesquisas em desenvolvimento

8h10 P1) Alteração da qualidade de vida de integrantes de reuniões mediúnicas após as restrições impostas pela covid-19

Ricardo Alves da Silva, Eliomar Borgo Cypriano e Raphael Vivacqua Carneiro

8h30 Perguntas e comentários

8h50 P2) Proposta de pesquisa de mediunidade intervivos

Mauricio Mendonça

9h10 Perguntas e comentários

9h30 P3) A irradiação mental no tratamento espiritual do transtorno mental - estudo de caso

Jaider Rodrigues de Paulo, Lenice Aparecida de Souza Alves, José de Avila Oliveira Neto, Viviane Aparecida dos Santos e Cristina Maria Pinheiro de Souza de Avila Oliveira

10h20 Perguntas e comentários

10h40 Intervalo

11h00 Apresentação 8 Uma identificação da causa mortis alegada pelos espíritos comunicantes das cartas psicografadas por Chico Xavier

Carlos Roberto Fernandes e Emanuelly Pereira da Silva

11h20 Perguntas e comentários

11h40 Encerramento

Apoio institucional: União das Sociedades Espíritas do Estado de São Paulo e Centro de Cultura, Documentação e Pesquisa do Espiritismo - Eduardo Carvalho Monteiro.

Abaixo temos um vídeo em inglês com a apresentação de parte do trabalho sobre mediunidade do Windbridge Institute, que a Dra. Beischel dirige.

13.8.21

ÓCHÊMA: UMA CONCEPÇÃO NEOPLATÔNICA DO PERISPÍRITO

Jáder Sampaio



Desenho de Gustave Doré sobre a transfiguração. Passagem bíblica em que Moisés e Elias, mortos há séculos, se mostram ao lado de Jesus "iluminado", e são vistos pelos apóstolos. Para o espiritismo isso só seria possível em função da mediunidade e do perispírito.

Existe na história da filosofia um platonismo considerado tardio, uma espécie de revivescência de Platão que ficou conhecido como neoplatonismo. Amônio Sacas, filósofo romano radicado em Alexandria, da transição entre os séculos 2 e 3 da era comum (ou depois de Cristo, como se falava na minha juventude...) é considerado um dos fundadores dessa escola e influenciou diversos pensadores de sua época, como Plotino, e mesmo pensadores cristãos, como o “quase-pai” da igreja, chamado Orígenes, que entre outras coisas, aceita a realidade lógica de uma pré-existência do Espírito como forma de se entender as diferenças de condição dos homens no mundo.

João Castro e Murilo Castro nos explicam que no neoplatonismo “a alma tem outro corpo quase-físico ou óchêma, geralmente adquirido durante a «descida» pré-natal através dos céus (kathodos; ver Plotino, Enn. IV, 3, 15; Macróbio, In Somn. Scip. I, 12). Este torna-se gradualmente mais pesado e mais visível à medida que desce através do aer úmido (Porfírio, De antro nymph. II). Com a sua vulgar devoção textual os neoplatônicos dedicaram-se a descobrir a origem desta doutrina em Platão e particularmente no Tim. 41d-e onde o demiourgos semeia cada alma num astro «como num carro» (ochema; confrontar Fedro 247b), antes de incorporar algumas delas na terra e «armazenar» outras nos planetas (ibid. 42d).” (http://platon.hyperlogos.info/ochema)

Nessas doutrinas temos mais um conceito bem semelhante ao de períspirito e um conceito antigo cujas modificações no tempo vão dar no éter, também empregado por Kardec que prefere entendê-lo como um estado ou quinta-essência e preferir o nome de fluido universal, fluido cósmico e às vezes fluido cósmico universal, com o mesmo sentido.

Por que voltar aos filósofos e pensadores antigos em busca de Kardec? Para entender o que ele dizia quando considerava Sócrates, Platão e outros pensadores como precursores do espiritismo cristão. Autores clássicos como Delanne, Denis e Flammarion se serviam sempre desse “retorno ao passado”, que mostrava aos leitores a erudição de Allan Kardec e permitia a ele uma melhor compreensão do significado dos conceitos dele.

Os que procuram o espiritismo apenas como uma terapia complementar, um espaço de socialização ou uma espécie de rito semanal não devem se interessar por esse tipo de texto, mas o que o entendem como uma filosofia de vida, que exige ser conhecida para ser critério de escolhas, saberão valorizar a iniciativa.

3.8.21

EIDÔLON OU SOMBRA: EM BUSCA DA IDEIA DE PERISPÍRITO NA GRÉCIA ANTIGA

 


Gravura de Gustave Doré, Matelda imerge Dante no rio Letes.


Jáder Sampaio


Ângelo B. Soares Pereira (2010) escreveu uma dissertação de mestrado para o programa de pós-graduação em Filosofia da Universidade de Brasília, intitulada “A Teoria da Metempsicose Pitagórica”. Nela temos uma visão muito interessante da evolução do conceito de psyché (alma) e do conceito de eidôlon (períspirito), de Homero até Pitágoras. Ele deseja marcar a distinção de uma visão mítico-poética, até uma visão crítico-racional do filósofo grego.

Surpreendeu-me bastante a visão de Homero, que já trazia em si a noção de “transmigração das almas”, um dos conceitos próximos à de reencarnação em Allan Kardec.

Homero é um poeta-aedo, considerado o autor de livros como Ilíada e a Odisséia, mas os historiadores atuais questionam se ele teria ou não existido, e se seria o autor, ou apenas um compilador de lendas antigas, mas isso não diminui a influência de seus escritos e das histórias que contou na cultura grega.

O autor da dissertação nos explica os três conceitos: psyché (alma), eidôlon (imagem) e sôma (corpo). No processo da morte, a psyché sai do corpo no último suspiro ou hálito (p. 36), ou por uma ferida do corpo. O corpo morto, sem psyché, é o sôma. Ao sair do corpo, ela toma a imagem do corpo. Torna-se o eidôlon (p. 37), e, citando Bento Silva Santos, ele afirma que o morto é, portanto, uma “sombra do homem que vivia”. Isso explica o emprego da palavra sombra como sinônima de Espírito. O eidôlon é psyché sob a forma humana da mesma forma que, em Kardec, o Espírito é o princípio inteligente (ou espírito com “e” minúsculo) que anima um “corpo espiritual” ou períspirito.

Gabriel Delanne atribui a Platão, ao falar da transmigração das almas, a afirmação que após 1000 anos de Hades, se tiverem de voltar, bebem a água do rio Letes “que lhes tiram a lembrança de suas existências passadas”. Delanne também diz que a alma, “desembaraçada de suas imperfeições, ... não vem mais à Terra.” (Delanne, Gabriel. A reencarnação, cap. 1, p. 24)

Esta é mais uma questão que sugere a aproximação entre o pensamento de Allan Kardec a elementos da filosofia clássica, e a identificação de Platão como um dos espíritos que contribuiu com a elaboração do pensamento espírita.


21.7.21

DEUS CRIOU O VÍRUS DA COVID 19?

 


Jáder Sampaio


“Segue-se que devam negligenciar as precauções necessárias em casos semelhantes [epidemia de cólera] e baixar a cabeça ante o perigo? Absolutamente: tomarão todas [as precauções] aconselhadas pela prudência e uma higiene racional, porque não são fatalistas e porque, se não temem a morte, sabem que não a devem procurar.”  (Allan Kardec, O espiritismo e o cólera, Revista Espírita, novembro de 1865. P. 327)


Recentemente ouvi um expositor espírita buscando Kardec para analisar um capítulo de livro de Divaldo Franco sobre a pandemia. Iniciativa importante, uma vez que o pensamento kardequiano é a estrutura básica do pensamento espírita em geral.

Causa primeira de todas as coisas

Ao analisar sua argumentação, encontrei conclusões falaciosas com base em ideias colhidas no texto de Kardec, que criam uma interpretação muito singular do autor, contraditórias às vezes, com o próprio pensamento de Kardec.

Uma das afirmações que ele fez:

“Deus é a causa primária de tudo: tudo é tudo mesmo, não é de uma coisa e outra não. ”

Ele não considerou o termo primária (também traduzido como primeira), e mudou o sentido da frase. São frases diferentes: “Deus é a causa de todas as coisas” e “Deus é a causa primária de todas as coisas”. Na primeira frase, se eu sou infectado por um parasita, isso é causado por Deus. Tudo o que acontece ao homem é causado por Deus (inclusive o sofrimento). O universo e tudo o que acontece nele está determinado pela vontade divina, portanto, não existe livre-arbítrio. Ele é apenas uma ilusão.

Na segunda frase, as escolhas do homem são de responsabilidade humana. Isso é o chamado livre-arbítrio, ou liberdade de escolha. Deus criou o universo, ou seja, a natureza e os seres espirituais (entre eles o homem). Por ter criado o princípio inteligente, o princípio material e as leis que regem o universo, Deus é a causa primeira, ou primária. Ele não é a causa imediata de todas as coisas. Aquilo que o homem faz, as mudanças que ele, por exemplo, impõe à natureza com ações irrefletidas ou criminosas, são causadas imediatamente por ele[1].  Nessa visão, o vírus não foi diretamente criado por Deus. Sua mutação é consequência da ação do homem, seja modificando o meio ambiente ou manipulando microorganismos em laboratório. Sua negligência ou desconhecimento, associados às leis naturais, têm o Sars Cov 2 como resultado, e ele age no homem segundo sua natureza. Deus não o criou porque desejava punir os homens (isso é uma humanização divina), ou para fazer desencarnar em massa as pessoas da Terra, ele é uma consequência indesejada das ações do homem na natureza, no uso do seu livre arbítrio.

As leis universais são perfeitas, fruto de Deus. As ações humanas são imperfeitas, uma vez que esse ser conhece apenas parcialmente as leis universais ou as negligencia, fruto da ignorância e do livre-arbítrio, assim como do egoísmo e do orgulho. Sempre que um homem vai de encontro às leis universais (essas, sim, criadas por Deus), ele, com sua escolha, leva consigo “todo o pacote”, ou seja, suas consequências.

Causa, risco e COVID-19

O que causa a COVID-19? A infecção com o Sars-Cov-2. Por que somos infectados pelo Sars-Cov-2? Uns porque não usaram qualquer tipo de prevenção e tiveram o contato com o vírus, que se multiplicou em seus organismos. Outros porque usaram de meios de prevenção e mesmo assim foram infectados pelo vírus. Contudo, o risco dos primeiros é muito maior que o risco dos últimos, se analisarmos um grande número de casos.

O que acontece com os que não se preveniram? Desencarnam como o espírito André Luiz. Ele não desejava desencarnar mais cedo, mas não se cuidou, e acabou indo antes do tempo. Isso acontece também com os suicidas. Ninguém planeja encarnar para desencarnar através do suicídio.

O que acontece com os que se preveniram e desencarnaram? Ou passam por uma expiação ou por uma prova. Talvez seja o momento previsto para a desencarnação.

Cabe a nós, espíritas, diante dessa forma de entendimento, recomendar a todos que tomem os cuidados necessários contra a doença, que se vacinem, que tomem as medidas já estudadas e propostas pela medicina, para que não venham a desencarnar antes do tempo.


[1] Em “O evangelho segundo o espiritismo”, Kardec escreve que “há males nessa vida em que a causa primária é o homem...” ou seja, há coisas decorrentes da ação e das escolhas humanas. Dessas, Deus só pode ser considerado causa primeira ou primária por ter criado o universo e estabelecido as leis que o regem.